Uma tese defendida pela socióloga Carla Martelli, do campus de Araraquara, associa o sucesso da cultura de auto-ajuda aos novos padrões de comportamento profissional e pessoal impostos pela economia globalizada. Com a promessa de sucesso no trabalho e nos negócios e felicidade na vida, os responsáveis por esse fenômeno fazem fortuna com a venda de livros, vídeos, palestras e consultorias. Apenas no campo editorial, de 1994 a 2002, o segmento voltado para o tema cresceu 700% no País, enquanto o conjunto do mercado se expandiu 35%. Segundo Carla, o traço comum dos produtos dessa área são receitas de auto-realização e técnicas de motivação, liderança e comunicação.
Ao dissolver estruturas econômicas e políticas tradicionais, a globalização tirou de seu eixo a ordem vigente em quase todas as esferas da vida, o que provocou crises de valores e insegurança no trabalho. “Por isso, a auto-ajuda se tornou uma alternativa acessível para um grande número de pessoas que buscam soluções imediatas na esperança de obter paz e felicidade”, afirma ela, que acompanhou palestras, entrevistou administradores e responsáveis pela área de recursos humanos e analisou publicações sobre o tema.
Segundo Carla, a pressão para produzir “mais, melhor e em menos tempo” exigiu a aplicação de teorias organizacionais que enfatizam a iniciativa pessoal do trabalhador. Além da competência técnica, o profissional precisa ter características como bom relacionamento em grupo, empenho e equilíbrio emocional. “Pede-se aos trabalhadores que saibam lidar com situações inusitadas com ousadia e
criatividade; que sejam empreendedores, ambiciosos, sensatos e otimistas; que cultivem espírito vencedor e assumam riscos, sendo ágeis e abertos a mudanças”, ressalta.
“A culpa é sua”
Em sintonia com o novo modelo de organização do trabalho, o discurso da auto-ajuda coloca no plano individual a responsabilidade por fracassos e sucessos: “Se a vida não anda bem, a culpa é do indivíduo; somente ele deve se aprimorar para transformar os insucessos, as doenças e as decepções em lições de vida e enfrentá-los com otimismo”, assinala a socióloga.Essa ênfase, de acordo com Carla, reforçada pela dinâmica dos meios de comunicação, modifica a percepção de tempo, espaço e relações pessoais. “Vivemos a época do ‘aqui e agora’, em que o passado não mais ensina, porque o novo tem que ser incorporado cada vez mais rápido e o futuro é incerto”, explica. “Daí, a insegurança de uma sociedade onde não só os produtos se tornaram demasiadamente descartáveis, mas também as pessoas”, argumenta.
Segundo a socióloga, diante de um mercado com mudanças constantes e incontroláveis, um clima de “salve-se quem puder” tem-se instalado entre colegas de trabalho, o que enfraquece os laços de lealdade e a própria visão de mundo. “É nesse contexto que os ensinamentos da auto-ajuda proporcionam uma certa sensação de amparo, aliviando a angústia e o sofrimento, ainda que momentaneamente”, observa.
A palavra dos gurus
No seu trabalho, defendido na Faculdade de Ciências e Letras (FCL), Carla analisou 30 títulos de auto-ajuda. Ela acentua a constância de histórias de sucesso, biografias de celebridades e modelos ideais de vida, quase sempre em textos recheados de frases de efeito.A socióloga ressalta a repetição do enfoque desses discursos nas soluções pessoais. Um dos exemplos é a obra O sucesso não ocorre por acaso, de Lair Ribeiro, generosa nos estímulos às tomadas de decisão individuais: “...o caso não é mudar o Brasil, nem a sociedade. Você que tem que mudar”, assinala um trecho do livro. John Adair, em Como tornar-se um líder, demonstra a mesma convicção: “Para que você se desenvolva enquanto líder, seja proativo”.
A pesquisadora compara os gurus da auto-ajuda a “curandeiros”, por utilizarem a fé como arma e remédio, além de apelarem freqüentemente para o tom profético e o uso do imperativo. “Eles abusam da idéia de que há algo de misterioso nos seus ensinamentos e que é preciso crer que os problemas possam ser solucionados se tais orientações forem seguidas”, afirma.
Carla cita um trecho de Oráculo da sabedoria do amor, de Vadim Samello: “O universo, a relação entre as pessoas, o amor, o corpo humano estão relacionados à energia invisível, a qual, misteriosa por natureza, deve ser aproveitada de forma sempre produtiva”, propõe o autor.
A socióloga ressalta que temas como emoção, espiritualidade e intuição vêm sendo incorporados na organização das empresas e influenciam a produção de manuais de RH, jornais e terapias de grupo. “Não lute! Não tente explicar! Simplesmente ouça a sua intuição”, diz o Manual de gestão de pessoas e equipes, de uma empresa pesquisada.
Muitos ensinamentos também se fundamentam na visão dos seres humanos como totalidades sem contradições: “O homem é um organismo único, global e deveria sempre ser visto como um todo. Somos um conjunto formado pelos corpos físico, mental, emocional e espiritual” (Nuno Cobra, Semente da vitória).
O apelo a possíveis leis da natureza é outra constante, como mostra um trecho do livro A Sabedoria dos Lobos, de Twyman Towery: “Porque todas as coisas respiram o mesmo ar – os animais, as árvores e os homens – todos têm que repartir o mesmo ar... todas as coisas estão interligadas”.
Para todos os gostos
Existe, da mesma forma, uma ênfase freqüente na necessidade de preparo e esforço para acompanhar as rápidas mudanças em curso. Em seus conselhos, Roberto Shinyashiki utiliza a metáfora da corrida: “Devemos correr muito, mas sem desespero e com bastante competência” (Revolução dos campeões).Os autores costumam advertir que, para ser bem-sucedido, o candidato ao Olimpo social encara inúmeras contrariedades. “Hoje, acredito firmemente que o sofrimento acelera o crescimento das pessoas e as torna mais preparadas para o sucesso”, sugere o empresário Abílio Diniz (Caminhos e escolhas: o equilíbrio para uma vida feliz).
Embora não sejam freqüentes, há também críticas à realidade atual, como a de Wanderley Rodrigues Filho, em Qualidade de Vida: “...os métodos de cobrança e promoção através da avaliação de desempenho têm levado as pessoas atualmente a tentar superar continuamente os próprios limites, sacrificando horas de esporte e lazer, prejudicando a própria saúde e bem-estar”.
Carla chama a atenção para o significado das contradições presentes nos textos. Ao mesmo tempo, eles sugerem que o indivíduo volte às “origens”, às tradições, sem deixar de viver o dia de hoje; que ele seja competitivo, mas saiba trabalhar em equipe; que se contente com sua vida, mas não se acomode. “São discursos que procuram acalmar todo tipo de ansiedade e, por isso, são acolhidos por multidões”, conclui.
Fonte: http://www.unesp.br/aci/jornal/202/ajuda.php
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